O governo da África do Sul confirmou nesta segunda-feira que vai apresentar um recurso contra a decisão da Corte Arbitral do Esporte (CAS, na sigla em inglês), que no último dia 1º rejeitou a apelação da atleta sul-africana Caster Semenya contra uma decisão que impede a bicampeã olímpica dos 800 metros de competir entre as mulheres em provas de 400m e até uma milha se não reduzir os seus níveis de testosterona.
A norma que entrou em vigor a partir da semana passada e foi colocada em prática pela Associação Internacional das Federações de Atletismo (IAAF, na sigla em inglês) obriga que competidoras que possuam altos níveis de testosterona natural se mediquem ou façam cirurgia para que possam participar de provas femininas que tenham estas distâncias que vão até uma milha.
O ministério dos Esportes da África do Sul revelou que a Athletics South Africa, entidade que comanda o atletismo do país, vai apelar também contra a decisão da CAS. Ao justificar a decisão de entrar com o recurso contra o máximo tribunal esportivo mundial, o ministério sul-africano diz que dois dos três juízes deste caso estavam "em conflito" e ressaltou que o julgamento ignorou "fatos" ao determinar a sentença.
Um número reduzido de motivos pode justificar uma apelação contra uma decisão da CAS, pois esta corte é a última instância esportiva. Uma apelação contra um veredicto da mesma, no caso, precisaria ser julgada pelo Tribunal Federal da Suíça.
No último dia 1º, um painel de três juízes da CAS, com sede em Lausanne, na Suíça, onde o complexo caso envolvendo Semenya vem sendo analisado desde fevereiro, concluiu que as novas regras impostas pela IAAF sobre competidoras com "diferenças de desenvolvimento sexual" são discriminatórias, mas devem ser aplicadas por causa do fator esportivo.
Dois dos três magistrados deste painel da CAS rejeitaram a apelação da sul-africana ao entenderem que "com base nas provas apresentadas pelas partes, essa discriminação é um meio necessário, razoável e proporcionado para alcançar o propósito da IAAF de preservar a integridade do atletismo feminino em eventos restritos", conforme justificaram no veredicto divulgado em 1º de maio. Estes dois juízes também entendem que mulheres com altos níveis de testosterona podem ter uma vantagem injusta sobre as suas adversárias com menores quantidades ou sem este hormônio no corpo.
Atual campeã do mundo da prova dos 800 metros e bicampeã olímpica da mesma prova ao faturar o ouro nos Jogos de Londres-2012 e do Rio-2016, Semenya deverá tomar medicamentos para reduzir os seus níveis de testosterona se quiser competir entre as mulheres e defender o seu título no Mundial que ocorrerá entre 28 de setembro e 6 de outubro, em Doha, no Catar.
Dois dias após a decisão da CAS, Semenya participou de sua última competição antes da nova regra da IAAF entrar em vigor e a sul-africana de 28 anos venceu a prova dos 800 metros da etapa de Doha da Diamond League. Ela cruzou a linha de chegada em 1min54s98, com vantagem tranquila sobre as concorrentes. A segunda colocada, Francine Niyonsaba (Burundi), completou em 1min57s75 e a norte-americana Ajee Wilson foi a terceira com 1min58s83.
Dois dias antes daquela vitória, Semenya deixou claro que se sente perseguida pelo órgão gestor do atletismo nos últimos dez anos ao comentar a decisão da CAS com as seguintes declarações: "Sei que os regulamentos da IAAF sempre visaram especificamente a mim. Durante uma década a IAAF tentou me frear, mas isso tem me fortalecido. A decisão da CAS não me impedirá (de continuar competindo). Mais uma vez vou subir e continuar a inspirar as mulheres jovens e atletas na África do Sul e em todo o mundo".
ENTENDA O CASO - A corredora sul-africana está envolta em uma polêmica relacionada a um caso que atinge as mulheres consideradas hiperandrógenas. O hiperandrogenismo é um distúrbio endócrino comum das mulheres em idade reprodutiva caracterizada pelo excesso de andrógenos como testosterona e afeta entre 5% e 10% das pessoas do sexo feminino.
E a polêmica em torno de Semenya já dura uma década, pois no Mundial de 2009, com apenas 18 anos, ela ganhou a prova dos 800m da competição um dia depois da revelação de que teve de fazer testes de gênero ordenados pela IAAF, em parte por causa de sua musculatura.
Na época, alguns meios de comunicação australianos foram criticados por publicarem matérias em que especulavam sobre a anatomia da então adolescente e a sul-africana precisou ser submetida a novos exames médicos depois daquele Mundial. E depois de ficar quase um ano fora das pistas de atletismo, ela foi liberada pela IAAF para participar de competições femininas.
Em fevereiro passado, após o final de uma semana de audiência, a CAS inicialmente anunciou que tornaria pública a sua decisão sobre a apelação da atleta "antes de 26 de março". Porém, o tribunal com sede em Lausanne, na Suíça, depois revelou que precisou adiar o veredicto sobre o caso "até o final de abril", ao receber novos documentos anexados ao processo, mas então não fixou nenhuma data para que isso ocorresse. O que só aconteceu no fim de abril, quando confirmou que daria a sua resposta ao recurso da atleta no dia 1º de maio.
E este veredicto foi anunciado após Semenya ter acusado o presidente da IAAF, Sebastian Coe, de abrir "velhas feridas" em entrevista a um jornal australiano, na qual o dirigente britânico apontou que ela e outras atletas com alta produção de testosterona endógena representem uma ameaça à "santidade da competição justa".
Em um comunicado divulgado no dia 27 de março, os advogados de Semenya disseram que os comentários de Coe e a nota "distorcida" do jornal Daily Telegraph referiu-se à meio-fundista sul-africana como "cheia de músculos" e "invencível" levaram a sua cliente a lembrar o quanto foi analisada e julgada durante o seu primeiro Mundial, em 2009.
Além dos dois ouros olímpicos que conquistou, Semenya faturou o título da prova dos 800m nas edições de Berlim-2009, Daegu-2011 e Londres-2017 do Mundial de Atletismo.