Um dos shows mais frios foi para um "público estranho" no Rio de Janeiro. Ney Matogrosso não diz exatamente onde, mas se lembra de que estava em um evento na Barra da Tijuca, cantando para "uma plateia AAA", quando, curiosamente, nada aconteceu. E por nada entende-se a energia, algo usado para descrever suas aparições desde os anos de Secos e Molhados, quando um animal selvagem subiu ao palco pela primeira vez. Música após música, a plateia não vinha, não cantava, pouco aplaudia. Ney acionou o modo padrão e "apenas" se apresentou. "Eu tive a impressão de estar cantando para uma plateia que não me conhecia, e eu dependo da reação do público para que a noite seja boa. Quanto mais gritam, mais eu me jogo, não tenho limite."
Um dos mais quentes foi em Macapá, das últimas capitais em que Ney jamais havia cantado (ainda faltam Teresina, Piauí; Porto Velho, Rondônia; Rio Branco, Acre; e Boa Vista, Roraima). Com a plateia nas mãos antes mesmo de começar, ele mostra Vida Louca Vida, de Cazuza, derrubando morais e bons costumes. "Agora eu vou ali tirar uma roupinha e já volto", diz antes de começar uma versão mais latinizada de Roendo as Unhas, de Paulinho da Viola.
Uma onda de grito vem da plateia enquanto Ney tira parte da roupa de cima em seu camarim armado no centro do palco. Amor, da fase Secos e Molhados, era o homem olhando para atrás sem traumas de um rompimento de banda doloroso, e Samba do Blackberry, lançado pelo grupo Tono, era a cota do olhar mirando o novo que poderia ser o futuro.
Ney Matogrosso colocou de pé a turnê mais longa de sua vida há pouco mais de cinco anos. Com Atento aos Sinais foi a ginásios, clubes, praças públicas, casas de show. "Eu nunca havia feito uma temporada tão longa", ele diz. Poucos artistas de sua geração haviam feito temporada tão longa. Depois de testar o repertório, lançou o disco e o DVD do show.
Com 76 anos até o próximo 1º de agosto, Ney se torna o artista mais ativo nos palcos de sua geração. Depois de ensaiar colocar ponto final na turnê por algumas vezes, eis que Ney decreta o fim de Atento aos Sinais e faz sua última passagem por São Paulo na noite de amanhã, 3, no Tom Brasil. O último show da turnê será, segundo o artista, dia 31 de março, no Circo Voador, Rio de Janeiro.
A permanência do show no palco foi uma imposição da demanda. Sempre que pensava em parar, mais shows eram vendidos. "Assim, a coisa foi ganhando vulto. Olha, sempre foi muito bom estar no palco com esse show, mas de dois anos e meio para cá é tudo abarrotado de gente." A euforia por Ney seria também reflexo das afirmações de gênero dos novos tempos? Ele não acredita apenas nisso. "É o show. É o show o que causa tudo isso. Nunca defendi postura alguma além da liberdade, é o que eu defendo." Ney diz sentir algo ainda mais forte nas ruas, a cada volta que resolve dar pelo Leblon. "Agora há pouco mesmo, uma senhora cruzou comigo e disse apenas 'paz e felicidade para você. Eu só posso ser uma pessoa feliz."
O que vem de novo
Um novo repertório já começa a ser esboçado. Depois de 31 de março, Ney decreta suas férias e segue para a Grécia, Atenas, onde prestigia a abertura de uma exposição sobre sua obra assinada pela artista Alkistis Michaelidou. Só na volta, começa a fechar o set list para seguir seu rito costumeiro. Ele coloca primeiro o show no palco para, depois de testar as canções, gravar o disco. "Não quero mais compromisso com músicas inéditas." Já é certo que vai gravar Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua, de Sérgio Sampaio; O Que Será, de Chico Buarque; e Muito Romântico, de Caetano Veloso. A pergunta então é sobre como pretende vestir essas canções. Uma banda pequena? Um piano e uma voz? "Não, quero a banda cheia de novo, eletrificada." O repórter brinca, correndo um certo risco: "Ok, vamos chamar a Nação Zumbi". Ney ignora: "Estou pensando em manter a mesma banda", ele diz.
Além de Atento aos Sinais, os cinco últimos anos de Ney se passaram com muitas participações em projetos especiais e em discos de novos cantores. O Rock in Rio de 2017 foi especialmente comentado. O encontro com o grupo Nação Zumbi no palco Sunset para fazer um repertório de Secos e Molhados seria um marco por vários motivos. Ney cantaria, pela primeira vez depois de 1973, apenas músicas de um grupo lamentavelmente dissolvido pela ambição. Ney e Nação parecia um encontro de células de um mesmo corpo. O peso na guitarra e na percussão da Nação sustentando a entrega indomável de Ney. Não foi bem assim.
O formato era um motivo de preocupação. Em vez de Ney assumir o vocal e o espaço físico do palco usando a Nação como grupo de apoio, ele foi politicamente correto e aceitou dividi-lo com Jorge Du Peixe, vocalista de tons graves. E o problema eram as tonalidades. "Nunca me dou bem dividindo vozes com homens. Meus tons são muito altos para vozes masculinas", diz Ney. A saída foi mexer nos tons, abaixando alguns para que se encontrasse o meio-termo entre os graves de Jorge e os agudos de Ney. Na prática não funcionou, e o resultado foi um desconforto vocal em frente às milhares de pessoas que estavam na pista do Sunset naquele instante.
Nos bastidores, diz Ney, não houve mal-estar, mas a probabilidade de se lançar uma turnê com Ney mais Nação ou até mesmo a gravação de um disco foi eliminada. Segundo Ney, essa questão nem sequer foi levantada. "Isso nem foi uma ideia", diz Ney. Mas havia sido antes, como ele mesmo disse, quando pensou em usar a base do Nação para sair com os shows de Atento aos Sinais.
O esquema de Ney para que nada saia do controle, ou quase nada, foi reforçado nos cinco anos de Atento aos Sinais. A banda deve chegar antes dele à casa de shows e passar o som. Ney chega entre 17h e 18h e canta cinco músicas. "Da mais fácil à mais difícil, para ir aquecendo." Ele termina o trabalho no palco e permanece na casa até o momento do show. Não faz exercícios e não come nada que seja pesado. Apesar de não tomar bebidas alcoólicas, pede sempre um vinho tinto para os convidados de seu camarim. Camarins, aliás, podem se tornar um tormento quando ele percebe que está há mais tempo atendendo aos fãs do que no palco de uma casa de shows.
Seu mau humor fica perceptível quando o som não está bom. "Quando eu grito e saio exausto é sinal de que o som não está bom." Ou quando a luz, justamente para ele, também um iluminador, não corresponde à marcação. "Se a luz não entra, vou perguntar por quê." O canhão que é usado em locais menores é um último recurso. "Não gosto porque ele atravessa o desenho da luz." Atravessar a luz, jamais.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.