Curiosidade

Como George Méliès chegou à Lua 67 anos antes da Apollo 11

17 jul 2019 às 11:21

Em 1902, o cineasta francês George Méliès apresentou um filme  que lhe daria notoriedade para todo o resto da história: os efeitos especiais e a clássica sequência do foguete preso aos olhos do satélite natural emViagem à Lua se tornaram a base do que viria a ser o cinema a partir do século 20, marcado pela expansão colonial e pelo desenvolvimento industrial.

O filme foi lembrado pela imprensa mundial neste mês por causa  do aniversário da chegada de fato do homem à Lua, em 16 de julho de 1969, com a missão liderada pela espaçonave Apollo 11. 

Méliès conseguiu apresentar seu filme ao proprietário de uma  sala de Paris após um acordo arriscado: depois de várias tentativas de convencê-lo, o cineasta propôs que emprestava o filme sem custos para uma primeira exibição e, se o público gostasse, ele deixaria que a obra fosse reproduzida desde que recebesse por cada  uma das rodagens (560 francos em branco e preto e 1.000 francos colorido).

Méliès era um dos entusiasmados empresários que queriam fazer  fortuna com o cinema, então uma novidade. Fazia sete anos que os irmãos Lumière, industriais ricos de Lyon, também na França, tinham apresentado uma invenção própria, o cinematógrafo, durante uma feira em que se apresentavam novidades da manufatura. Foi ali  que, segundo muitos especialistas, o cinema nasceu em seu modelo atual, ainda muito inspirado nos fotolivros.

"As primeiras sessões eram muito curtas. Uma dúzia de pequenos  filmes, de um ou dois minutos de duração, cujo único objetivo era oferecer ao público fragmentos da vida com realismo e movimento", diz o professor de Audiovisual e Cinema Wagner Silveira, da Unip de São Paulo. 

Para o começo do século 20, em meio aos dias tensos da "paz  armada" na Europa e ainda na ressaca do positivismo de Comte, os Lumière já não detinham mais o monopólio sobre a fabricação e a exploração comercial dos aparatos do cinema. O mercado cinematográfico fora perfurado por empresários oportunistas que viam na  novidade uma chance de enriquecer ou aumentar suas fortunas -- como Léon Gaumont, Charles Pathé e George Méliès.

Méliès era, naquela época, diretor de teatro, e decidiu incorporar  o cinematógrafo dos Lumière em seus espetáculos. O equipamento logo lhe abriu as portas para produzir peças publicitárias cujo cenário era o próprio palco, como foi com o uísque John Dewar e a marca de chocolates Menier, assim como o fez entrar no jornalismo  -- ainda que do seu modo. 

"Ele pensava que as notícias filmadas diretamente eram mais  fáceis, que difícil era mostrar o que nenhum operador tinha conseguido ver ou rodar. Foi assim que se dedicou a fabricar falsas realidades, ou atualidades reconstruídas, fazendo maquetes de objetos de verdade para enganar os telespectadores", explica Silveira.  "Ele reconstruiu um combate naval na Grécia, depois uma colisão entre embarcações no alto-mar... Era o privilégio do espetáculo em detrimento da informação", completa.

Foi no cinema, propriamente, que Méliès fez seu nome entrar  para a história: Viagem à Lua não foi apenas o primeiro filme de ficção científica produzido, mas também a primeira paródia sobre o gênero. A rodagem da película demorou três meses -- um tempo muito maior do que se costumava usar para fazer um filme na época. Segundo Elizabeth Ezra, autora  da biografia George Méliès (2000), Méliès pensava como artista, enquanto Gaumont e Pathé queriam apenas aplicar o método industrial de produção no recém-nascido cinema comercial.

Segundo Ezra, o interesse de Méliès na Lua era fruto de um período  em que a Europa acreditava-se pronta para explorar o que até então era desconhecido. No início do século, a França tinha colônias na África e na Ásia que serviam para afortunados franceses testar, medir, registrar, conhecer e provar os inventos produzidos  na metrópole. A Lua, para o diretor, era apenas mais um objetivo a ser alcançado.

Viagem à Lua conta a história de um grupo de astrônomos -- um deles é próprio Méliès -- que decide viajar à Lua depois de construir um foguete que, quando pronto, é disparado por um grande canhão. Depois de uma viagem relativamente curta, eles enfim desembarcam na superfície  lunar. Então acontece a famosíssima sequência em que a nave atinge um dos olhos do satélite. Os astrônomos, por sua vez, são recebidos por um grupo de selvagens habitantes da Lua que os prendem, mas acabam derrotados depois que um dos viajantes consegue matar  o "líder" local. 

Méliès não mediu custos para rodarViagem à Lua e, do ponto de vista produtivo, recorreu a todos os métodos cinematográficos e teatrais que existiam. Um deles era a técnica da "transparência", em que uma cena previamente filmada rodava atrás dos atores em um novo take, dando a impressão de que o movimento  era real. "O mundo de Méliès se definia basicamente por uma estética e pelo conjunto de temas que ele abordava, mas sobretudo pelos seus truques - dos quais era mestre", diz Silveira. 

Méliès, porém, não pôde desfrutar muito do sucesso do filme,  porque logo descobriu que ele estava sendo exibido em vários cinemas dos Estados Unidos sem que recebesse nenhum pagamento pelos direitos autorais. O cineasta se viu até mesmo envolvido em um conflito com o inventor Thomas Edison, que passou a dizer que todas  as fitas rodadas em 35mm eram suas, já que ele tinha sido o criador delas. Endividado, Méliès acabou tendo que trabalhar para Edison e para Pathé, ainda que desprezasse o estilo comercial deste último.

Segundo Ezra, Méliès foi forçado a rodar filmes westerns até  a Primeira Guerra Mundial, quando ficou responsável por uma loja de brinquedos em Paris até a morte.