Moda

Como um acidente nos EUA espalhou tênis esportivos por dois continentes

03 jul 2019 às 20:04

Ao longo de 2018, do Caribe à Europa, centenas de pares de sapatos novos começaram a aparecer nas praias. A princípio, surgiram em pequenas quantidades e não levantaram muitas suspeitas: apenas um jornal português chegou a dizer que os calçados que amanheciam na Ilha de Flores, no Açores, poderiam ser de algum naufrágio de refugiados tentando chegar no Velho Continente.

No entanto, logo o número de sapatos começou a aumentar: tênis masculino e feminino, sandália, papete, sapatilha... Todo tipo de calçado esportivo começou a aparecer com regularidade nas praias de Portugal, da Escócia e da Irlanda. Eram das mesmas marcas e tinham a mesma data de produção -- além de serem aparentemente novos.

Quando, no mesmo Açores, uma leva de 60 tênis da Nike amanheceram na praia de Flores, a imprensa se alertou. O mesmo aconteceu meses depois em Cornwall, no Reino Unido, e, como se fosse uma reação, apareceram calçados em Bahamas, Bermudas, França, Irlanda, Escócia e nas ilhas do Canal da Mancha. Então, passou-se a desconfiar que eles eram todos provenientes de uma mesma embarcação.

Após uma investigação, os países descobriram que os tênis estavam no Maersk Shangai, um navio de 324 metros capaz de transportar 10 mil contêineres e que, no começo do ano passado, viajava de Norfolk, na Virgínia, pela Costa Leste dos EUA, em direção a Charleston, na Carolina do Sul. Em março, nas águas da Carolina do Norte, o barco enfrentou uma tempestade e viu boa parte da carga cair no mar.

Era março e a empresa responsável pela embarcação chegou a lotear aviões para localizar os contêineres no mar, encontrando nove deles. Outros sete, no entanto, se perderam. Apesar da suposição ser vigorosa, nem a Nike, nem a operadora do navio falaram com os jornais, mas duas marcas cujos produtos estavam no carregamento -- Triangle e Great Wolf Lodge -- confirmaram que os contêineres perdidos tinham peças de suas produções.

Para além da sujeira nas praias, instituições ambientalistas condenaram o impacto do naufrágio dos contêineres no oceano: "Seja onde seja, se vai até o fundo do mar ou chega às praias, é prejudicial para a vida marinha", disse Lauren Eyles, da Sociedade de Conservação Marinha do Reino Unido ao jornal Telegraph. "Os sapatos se degradarão em microplásticos ao longo dos anos, o que terá um grande impacto na incrível vida selvagem que temos tanto no Reino Unido quanto em outras partes do mundo", completou.

A estimativa das instituições é de que 10 milhões de toneladas de plástico vão para os oceanos do mundo a cada ano. O Conselho Mundial de Transporte Marinho, estima que, dos 218 milhões de contêineres que são carregados anualmente, pouco mais de 1 mil caem no mar. Oceanográficos estadunidenses, porém, discordam desse dado: dizem que, além de ser um volume maior, nunca se questiona o que está em cada contêiner que cai nas águas.

Se havia 10 mil sapatos em cada contêiner e se caíram sete deles no mar, estão estima-se que 70 mil calçados estão no oceano, mas nem todos vão aparecer em praias. Segundo especialistas, a maior parte desse carregamento está, na verdade, dando voltas no Oceano Atlântico presa em uma rede de correntes poderosas. O aparecimento nas praias diz respeito apenas ao movimento dessas correntes.

De acordo com o oceanógrafo Curtis Ebbesmeyer, ouvido pela BBC, "se os sapatos percorreram a metade do caminho (da Carolina do Norte ao Reino Unido) em pouco mais de um ano, então é de se calcular que se demora três anos para percorrer o Atlântico Norte. Esse é o período orbital típico dos sapatos, mas isso é algo que não está sendo estudado pelos oceanógrafos".

Segundo ele, há diferenças até no formato dos pares de sapatos e suas flutuações pelo oceano: "Os pés direitos e esquerdos boiam com orientações diferentes em relação ao vento. Então, quando ele sopra, os pares se separam. É por isso que há praias só com lados direitos e outras só com lados esquerdos", finalizou.