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Cidade no norte do Paraná é exemplo em acesso ao tratamento com cannabis

20 mar 2024 às 21:18

Há cada vez mais notícias sobre projetos de lei propondo o fornecimento de medicamentos à base de cannabis pelo SUS (Sistema Único de Saúde), caso aprovados, centenas de famílias de todo o país seriam beneficiadas com tratamento que leva evolução visível aos olhos. E quando a se fala em família, é porque a qualidade de vida vem por simbiose entre paciente e seu cuidador direto.

 

Pioneira no programa de distribuição gratuita da cannabis medicinal, Mandaguari, no norte do Paraná, cidade com pouco mais de 36 mil habitantes, se tornou a primeira do sul do Brasil a permitir o acesso da população aos tratamentos à base de canabidiol e tetrahidrocanabidiol. A iniciativa partiu do legislativo e é chamada de “Lei Pedro Henrique”. O vereador Sidney da Silva, o Chiquinho, autor da lei, se emociona ao lembrar a história do garotinho de apenas 10 anos, que morreu em março de 2022. Pedro fazia uso de medicamentos à base de cannabis. Segundo o vereador, a mãe realizava todo tipo de campanha para ter dinheiro e oferecer ao menino recursos essenciais à saúde. Uma luta, que para Chiquinho poderia ser amenizada com o apoio do poder público. “Me falavam que era quase impossível aprovar um projeto desses. Mas fomos à luta”, disse o Chiquinho. 



Aprovado por unanimidade, o projeto se tornou realidade em novembro de 2023. Desde então, Mandaguari distribui através da Farmácia Municipal a cannabis medicinal para moradores com dois anos ou mais que tenham TEA (Transtorno do Espectro Autista) ou epilepsia refratária. 


“meu filho começou a falar”


Aos cinco meses de vida, o Arthur Oliveira teve a primeira crime de epiléptica, várias outras vieram na sequência, e junto delas, o diagnóstico de síndrome de West – um transtorno neurológico que surge logo nos primeiros meses do bebê. A mãe de Arthur, a professora Daniele Azevedo, conta que mesmo com todo o suporte oferecido, o filho sofreu com atraso no desenvolvimento. “É uma epilepsia de difícil controle. Na época fizemos o tratamento específico para a síndrome. Aos três anos recebemos também o diagnóstico do autismo. Apesar de todos os tratamentos, a fala dele nunca tinha avançado”.

 

Arthur hoje tem oito anos e é um autista não verbal. A mãe explica que o menino sempre foi bastante agitado e tinha baixa concentração. Na tentativa de acalmar a ansiedade do pequeno, durante toda a vida alguns medicamentos foram receitados, porém, todos fizeram efeito contrário. “Como ele faz esses tratamentos desde sempre com uma neuropediatra, foi necessário entrar com o canabidiol”, explica Daniele. 


A mãe conta ainda que ouvia falar em canabidiol quando Arthur era bebê, mas que para ela esse era um sonho distante. Em janeiro de 2023, aos sete anos, o menino iniciava o primeiro frasco da cannabis medicinal. A marca receitada para Arthur custava cerca de R$ 800, valor bancado pela família. Apesar do alto custo, para Daniele, a saúde do filho não tinha preço e ela abriria mão de qualquer coisa para ver a evolução do filho. “Pouco tempo depois do início do tratamento, meu filho que só balbuciava começou a soltar palavrinhas”. 


A flor da vida


Em 2015, pela primeira vez a Anvisa aprovou um medicamento à base de cannabis para o tratamento de epilepsia em crianças.

 

Após essa primeira aprovação, o movimento de liberações a tudo o que envolve a planta avançou, mesmo que a passos lentos, ao contrário dos pedidos de salvo conduto para o cultivo da planta em casa, que saltou de dois, em 2018, para um total de 90, até o final de 2023, de acordo com o STJ (Superior Tribunal de Justiça).

 

Com 45 anos de experiência, boa parte desse tempo observando os benefícios do canabidiol, o cirurgião e clínico geral José Carlos Machado de Oliveira é um árduo defensor da substância, principalmente em pacientes autistas, portadores de doença de Parkinson, Alzheimer e doenças autoimunes. “A ação do canabidiol no autista é fundamental. Ela atua em cima do fator cognitivo da criança, que passa a aprender melhor. Quando a criança aprende, ela fica mais tranquila. Além de melhorar a qualidade de vida da criança, melhora a qualidade de vida da mãe, porque a mãe é a sofredora”. O médico explica ainda que crianças epilépticas, antes tratadas com medicamentos tradicionais, viviam em um “efeito zumbi” pela quantidade de drogas, a cannabis além de evitar a convulsão torna o paciente sociável.  



Por sua vez, a qualidade da substância utilizada nos tratamentos é questionada pelo médico. Ele alerta à importância de um medicamento bem produzido, especialmente para a criança autista. “A maioria é sensível aos alergênicos. Nós temos que cuidar muito bem do intestino da criança. O cannabidiol não pode ser produzido em qualquer esquina. Já vi cannadidiol a base de óleo de soja, óleo de milho, isso vai destruir a microbiota da criança”, explica José Carlos. 


Regulamentação no Paraná


Em fevereiro de 2024, o estado do Paraná avançou no processo de regulamentação para acesso a esses medicamentos. No dia 26, foi publicado um decreto que estabelece as primeiras regras para uso da substância. O documento indica que os remédios que tiverem eficácia e segurança comprovadas pela Anvisa possam entrar no rol de medicamentos ofertados pela Secretaria de Saúde aos pacientes que comprovadamente necessitam dos fármacos.

 

Em Londrina, no norte do Paraná, um projeto que também deve facilitar o acesso de pacientes aos benefícios da cannabis, foi protocolado na Câmara de Vereadores. 

 

Em Mandaguari, além de Arthur, outras 34 crianças foram beneficiadas com a “Lei Pedro Henrique”. Durante todo o processo de elaboração e tramitação do projeto na câmara a AFAM (Associação de Familiares de Autistas de Mandaguari) acompanhou de perto e promoveu debates de combate ao preconceito.

 

O artigo 196 da Constituição Federal reconhece que a saúde é direito de todos e dever do Estado. “Precisamos ajudar essa classe sofredora. Essas crianças, se estimuladas, normalmente são os gênios da história, nós temos que fazer com que isso se perpetue”, completa José Carlos.